quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Passado

Não tive outro remédio senão vestir outras roupas, pois aquelas estavam muito amarrotadas. Por sorte, encontrei um guarda que me indicou o caminho até ao salão de banquetes. Bati à porta, que estava vigiada por dois guardas, e ouvi a voz de Odin a autorizar-me a entrar. Quando abri a porta, arregalei os olhos e engoli em seco. Pensei que o jantar fosse com montes de gente, com Sif e os Três Guerreiros, mas a grande mesa de madeira estava ocupada apenas por quatro pessoas: Odin, Frigga, Thor e Loki e havia lugar para mais um. A sala tinha ornamentos dourados, era de teto alta e bem iluminada, com uma lareira do lado direito e a mesa ao centro e vários quadros nas paredes.
Odin sentava-se à cabeceira da mesa, Frigga do seu lado direito, Thor do seu lado esquerdo. Loki estava sentado ao lado de Thor e havia um lugar vazio à sua frente, ao lado de Frigga. Adivinhem para quem.
Exato. Para mim.
-Peço desculpa se cheguei atrasada – afirmei, estacando no meio da sala, sem saber como me comportar.
-Ora essa, não chegaste atrasada – descansou Frigga – sem formalidades, Bridget. Senta-te.
Assim o fiz, trocando um olhar com Loki. Vi o seu sorriso mesquinho a aparecer, mas desviei o olhar para o meu prato. Suspirei mentalmente de alívio ao constatar que era frango, algo a que estava habituada a comer.
-Então, como está a Jane? – perguntou Odin a Thor e sorri quando vislumbrei um leve rubor na cara de Thor. Jane Foster era uma cientista por quem Thor se apaixonara quando chegara à Terra pela primeira vez.
-Está bem – respondeu ele. Loki fez uma expressão de troça e só me apetecia mandar-lhe um pontapé por debaixo da mesa. Ele não podia ver ninguém feliz que tinha logo de gozar!? Céus!
-Loki, não zombes – advertiu Frigga – nunca se sabe quando te pode acontecer a ti.
Ele soltou uma gargalhada de escárnio.
-Pois sim, como se fosse gostar de uma patética mortal como a Jane Foster… - riu ele.
-Como se alguém pudesse gostar de ti depois do que fizeste – respondeu Odin, a voz severa. Loki olhou-o, furioso e eu senti-me a mais. Como se estivesse a intrometer-me numa discussão familiar ou algo assim… não pertencia ali.
Um silêncio desconfortável instalou-se no salão, todos com medo de dizer algo que pudesse piorar a situação.
-Asgard é muito bonito – afirmei eu, passado um pouco. De certeza que estava a fazer figura de tola, mas pelo menos Odin, Frigga e Thor sorriram com orgulho.
-De facto, é – concordou Odin.
-Mas chegou-nos aos ouvidos que Midgard também tem os seus encantos – declarou Frigga, picando o garfo na sua perna de frango.
-Sim, se não fosse a guerra e outros crimes horríveis – não olhei para Loki, mas fiquei com a impressão que os outros pensaram que lhe estava a mandar uma indireta.
-Fala-nos da tua família, Bridget – pediu Frigga e eu por pouco não me engasgava com a água que acabara de beber.
-Mãe – disse Thor. Não sabia se ele sabia que o assunto “família” era um assunto delicado para mim, mas ainda que lhe ficasse agradecia por ter interferido, não podia deixar a rainha sem uma resposta.
-Bom, eu… - levantei a cabeça do prato para a minha frente, e só depois me lembrei quem estava à minha frente. Pensei que Loki fosse pôr aquele seu sorrisinho, mas tinha uma expressão diferente… quase curiosa – sempre vivi com a minha avó. Bom, até aos dezassete anos, porque ela… bom… - lutei contra a vontade de chorar – ela faleceu e foi aí que descobri os meus poderes e a S.H.I.E.L.D me recrutou.
Sim, era verdade. Nunca conhecera ninguém da minha família sem ser a minha avó, mas nunca tivera problemas com isso. Claro que sempre me perguntara quem eram os meus pais e se tinha mais família, mas sabia que eles tinham morrido num acidente de comboio quando eu tinha apenas dois anos. De qualquer maneira, a minha avó era tudo para mim, sempre cuidara de mim e me tratara bem, pelo que o meu mundo desabara quando ela falecera. Por essa altura, tinha acabado o Secundário e não sabia o que fazer. O Banco ficou com a casa da minha avó e dormi umas noites num hotel… e depois um dia estava a sair de um supermercado quando me tentaram assaltar e os meus poderes explodiram pela primeira vez, arrasando-os. Não sabia o que se passava, estava confusa e com medo, mas Fury descobriu e veio ter comigo, dando-me um lar e ajuda para encontras as respostas que precisava. A S.H.I.E.L.D tem sido a minha casa desde então, mas consegui comprar um pequeno apartamento em Nova Iorque. Fury deu-me espaço e tempo para refazer a minha vida depois da morte da minha avó e eu agradeço-lhe muito por isso, ainda mais porque se não fosse a S.H.I.E.L.D eu não saberia onde estaria agora.
-E os teus pais? – perguntou Frigga, sem querer ser indelicada.
-Morreram quando eu tinha dois anos – respondi, a voz sumida.
Frigga caiu em si.
-Oh, desculpa, eu não queria… lamento muito. Não tinha o direito de desatar a fazer perguntas sobre ti, Bridget, desculpa-me.
-A culpa não é sua, majestade – afirmei, pousando os talheres no prato – mas se me dá licença… preciso de apanhar ar.
-Claro – acedeu ela e dito isto levantei-me e abandonei o grande e dourado salão de banquetes.

*

Ponto de vista de Thor

Bridget deixou o salão e eu interroguei-me se deveria ir atrás dela.
-Eu e a minha grande boca – resmungou a minha mãe, preocupada.
-Não te preocupes, mãe. A Bridget não está chateada contigo, só precisa de espairecer – afirmei – estará bem amanhã.
-Mas a culpa é minha…
-Não é. Não havia maneira de saberes – indaguei.
-Acham que devia ir atrás dela? – questionou a minha mãe e antes que eu ou Odin pudéssemos responder, Loki disse algo que nos deixou a todos completamente boquiabertos.
-Não. Eu vou – e dito isto, e antes que algum de nós pudesse sequer replicar, deitou o guardanapo para cima da mesa, levantou-se e saiu.

*

Ponto de vista de Bridget

Uma lágrima escorreu-me pela cara quando me sentei numa das muitas varandas do palácio, a olhar o céu estrelado. Corria uma brisa fresca e não se via ninguém. O silêncio era ocasionalmente interrompido pelo piar de um mocho ou pelo bater de asas de uma coruja.
Olhei diretamente para o céu, ouvindo passos, mas não conseguia dizer se eram verdadeiros ou se eram fruto da minha imaginação.
-Tens de desculpar a minha mãe – disse uma voz e não sabia se havia de ficar espantada por Loki ter vindo atrás de mim se por chamar “minha mãe” a Frigga. Segundo ele, não queria ter mais nada a ver com as pessoas com quem jantara e cá para mim ele só viera ter comigo para me gozar.
-Não estou chateada com ela – assegurei, limpando a cara com as mangas do casaco. Loki entrou no meu campo de visão, encostando-se ao outro lado da varanda e pareceu-me ver uma expressão de choque quando me viu a chorar, mas por certo era só imaginação minha, estava escuro e Loki não se importava com ninguém à exceção dele.
-Bom, mas estás claramente chateada com algo.
-Só estou triste porque gostava muito dela – apercebi-me que Loki sabia a quem me queria referir quando disse “dela”.
-Todos perdemos coisas de que gostamos – afirmou Loki e em vez de lhe dizer que a minha avó não era uma “coisa” senti-me tentada a questionar:
-Até tu?
O seu rosto escureceu e ele desviou o olhar, mirando a noite escura.
-Sim… até eu.
Nessa altura, eu sabia que ele estava apenas a enganar-me, mas não sabia porquê e muito menos porque estava eu a entrar no jogo.
-Quem? – vi-me a perguntar. Depois os seus olhos frios cruzaram-se com os meus e senti o velho Loki de volta.
-Como se te fosse dizer.
-Não precisas, porque acho que consigo adivinhar – arrisquei, levantando-me do banco e inclinando-me sobre o beiral da varanda, espreitando lá para baixo.
-Ai sim? Eu aposto que não consegues – afirmou Loki.
-Acho que pensas que perdeste o amor dos teus pais e de Thor – respondi rapidamente. Pela sua expressão, não conseguia dizer se estava certa, mas já sabia que o Deus do Prejuízo era imprevisível.
-Porque haveria de me preocupar com eles? – interpelou.
-Porque eles se preocupam contigo – afirmei, antes de pensar. Ele arqueou uma sobrancelha.
-Achas mesmo?
Virei-me e olhei-o para o enfrentar, cruzando os braços sob o peito.
-Achas mesmo que se eles não se preocupassem contigo te deixariam andar livremente pelo palácio e ainda por cima te dariam um lugar à mesa? Pensei que o Deus das Ilusões fosse um bocadinho mais esperto que isso.
-Deus das Ilusões? Acho que nunca ninguém me tinha dito essa - ele sorriu presunçosamente. 
-Essa não era a questão. Estará um certo Deus a tentar escapar ao que eu estou a dizer? – ironizei.
-Posso ser muita coisa, mas não sou um covarde – argumentou ele.
-Nunca disse que eras – contrapus.
-Mas pensaste.
-Também lês mentes, é? – contestei.
-Às vezes gostava de conseguir – respondeu ele e os seus olhos transmitiram-me uma sensação diferente de todas as outras, tal como Heimdall, quando parecia que me via a alma. Um arrepio percorreu-me o corpo.
-Sim, eu também – desviei o olhar para o céu estrelado. Mordi o lábio, a meditar se devia dizer o que me apetecia. Como ele ficou calado, avancei - porque não te redimes, Loki? Ainda vais a tempo, sabes? – não me perguntem porque estava a falar disto, mas parecia-me a coisa mais acertada a dizer – ainda há pessoas que gostam de ti, apesar de tudo o que fizeste, ainda há pessoas prontas a perdoar-te, se tu ao menos visses isso e conseguisses perdoar-te a ti próprio, se te conseguisses livrar das trevas… se deixasses de te guiar pelos outros…
-Não preciso dos teus sermões – cortou ele, a voz gelada e consumida pelo desprezo. Encolhi os outros, tentando mostrar-me indiferente.
-Só estava a tentar ajudar.
-Não preciso da tua ajuda, mortal! Não da tua, não da de ninguém! Não preciso da tua pena, não percebes nada disto!
-Oh, tens a certeza? – encarei-o, o frio a envolver-me. Sabia que era ele a produzir aquele frio, mas não me ia dar por vencida – é por causa desse teu comportamento defensivo e arrogante que mergulhaste num estado em que pensas que estás completamente sozinho e não há ninguém disposto a ajudar-te! Se tivesses coragem e sentisses remorsos, se pedisses desculpa, se pedisses ajuda, nada estaria perdido! Mas já percebi que não queres a minha ajuda, nem a de ninguém!
-Exato! – gritou ele e lancei-lhe um último olhar furioso, indo-me embora.

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